Introdução:
Duas grandes confissões de fé do povo Congregacional dizem o seguinte sobre a Igreja:
“I- A igreja católica ou universal, a qual é invisível, consiste de todo o número dos eleitos que têm sido, são ou serão reunidos num só corpo, sob Cristo sua Cabeça; ela é a Esposa, o Corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as coisas”.
Ef. 1: 10, 22-23; Col. 1: 18.
“II-O corpo inteiro daqueles que, espalhados por todo o mundo, professam a fé do evangelho e obediência a Deus através de Cristo de acordo com o mesmo, e que não renegam essa sua profissão por erros fundamentais ou por conduta impura, é a igreja visível, católica de Cristo, e pode ser assim chamado, se bem que como tal não lhe é confiada à administração de ordenanças, nem tem ela oficiais que governem ou dirijam o corpo inteiro.”
I Co. 1:2; 12: 12-13; Sl .2: 8; I Co. 7: 14; At. 2:39; Gn. 17: 7; Rm. 9: 16; Mt. 13: 3; Cl. 1: 13; Ef. 2:19; 3:15; Mt. 10:32-33; At. 2:47.
(Declaração de Savoy de Fé e Ordem (1658), XXVI, 1-2)
Art. 19º - Da União do Corpo de Cristo
“A Igreja de Cristo no céu e na terra é uma só (1) e compõe-se de todos os sinceros crentes no Redentor (2), os quais foram escolhidos por Deus, antes de haver mundo (3), para serem chamados e convertidos nesta vida e glorificados durante a eternidade (4)”.
(1) Ef. 3:15; (2) I Co. 12:13; (3) Ef. 1:11; (4) Rm. 8: 29,30.
(Os 28 Artigos da Breve Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo)
É comum usarmos a palavra “igreja” para designar uma casa onde pessoas se reúnem para prestar culto cristão. A palavra é popular sendo vista em muitos lugares, mas mesmo assim, muitos de nós não conhecemos a definição da mesma. Assim, não poucas vezes há confusão com respeito ao seu significado.
Também se escuta dizer que a primeira igreja do mundo foi a Igreja Católica Romana e que as igrejas evangélicas são uma invenção moderna. E é fato que muitos de nós às vezes têm duvidas a respeito destes assuntos.Você já teve curiosidade de saber o que é a Igreja, e onde ela começou? Então mãos à obra, vamos conhecer este assunto mais de perto neste capítulo.
I- O QUE É A IGREJA?
1.a- O Antigo Testamento. Como você bem sabe a Bíblia tem duas partes principais: o Antigo e o Novo Testamento. Vamos olhar como estas duas partes falam sobre o povo de Deus.
No Antigo Testamento encontra-se a palavra hebraica qahal para designar a reunião, a assembléia do povo de Israel. Esta palavra significa a reunião de um grupo de pessoas conclamadas por Deusespecialmente com propósito religioso[1]. William Barclay nos diz que esta palavra era usada para a reunião do “povo de Deus conclamado por Ele, a fim de escutar a Deus”, [2] mas esta reunião podia ser também para tratar de assuntos jurídicos e políticos.
1.b- Quando chegamos ao Novo Testamento encontramos a palavra grega έκκλησία (ekklesia) que é traduzida por igreja. Esta é uma palavra composta de έκ (ek = de, para fora), e καλέω (kaleô = chamar), ficando a combinação então: chamar de, chamar para fora.[3] Sobre esta palavra escreve Dewey M. Mulholland:
A etimologia de ekklesia contribui para conhecermos o significado da palavra igreja. É composta de ek(para fora) e kaleô (chamar, convocar). Como Deus chamou seu antigo povo para fora do Egito e o conduziu para a Terra Prometida, ele chama pessoas para “fora do mundo” (“não se amoldem ao padrão deste mundo”, Rm. 12:2) para caminhar para “o alvo, a fim de ganhar o prêmio da chamada celestial de Deus em Cristo Jesus” (Fp. 3:14).[4]
1.c-Na época do Novo Testamento esta palavra era normalmente usada para designar uma reunião por qualquer motivo (At. 19: 32). Num lugar em que havia gente reunida, ali havia uma ekklesia/igreja. Os cristãos começaram a aplicar esta palavra também para suas reuniões, e assim as reuniões dos crentes passaram a se chamar “ekklesia/igreja”. Observe alguns aspectos do uso desta palavra pelos escritores do Novo Testamento:
- Ekklesia pode ser os crentes reunidos em uma casa (Rm. 16:5; 1 Co. 16:19);
- Ekklesia pode ser os crentes reunidos de uma determinada localidade, ou cidade (Mt. 18:15-17; At. 11:26; 1Co. 16:1-2; 2 Co. 8:1). A palavra aqui está significando os cristãos reunidos em um determinado local. Estaekklesia está situada numa cidade, tem seu rol de membros definido, e nem todos que fazem parte da mesma são cristãos de verdade. É uma igreja local.
- Ekklesia poder ser os crentes reunidos de uma determinada região (At. 9: 31). Observe que aqui a palavra engloba todos os cristãos das regiões citadas.
- Ekklesia pode ser os cristãos verdadeiros de todas as épocas; todo povo verdadeiro de Deus, sem distinção (Ef. 1: 22-23; 5:25-26; Cl. 1:18-24). Aqui a palavra significa a comunhão de todos os cristãos da terra, de todos os tempos e lugares, os que já estão com Cristo (Hb. 12:23); os que ainda estão na terra, e os que ainda serão salvos. A ekklesia aqui é um corpo espiritual universal, não uma organização terrena. É um organismo vivo. Foi esta ekklesia/ igreja que Jesus veio edificar (Mt. 16: 16-18).
1.d- Portanto, a palavra ekklesia (igreja) é usada no Novo Testamento, tanto para significar todos os cristão verdadeiros de todos os tempos, como para significar grupos de irmãos reunidos em um lugar, uma região, ou numa casa de família (1Co. 16:19; Fm. 2). Isto nos mostra que não é a hierarquia clerical, o ministério ordenado, o número de membros, oficiais, ou o lugar da reunião que determina o emprego da palavra igreja, o que conta é se a reunião é feita em nome de Jesus Cristo (Mt. 18:20). Esta é a condição para ser umaekklesia, assembléia, igreja cristã com a presença de Cristo.
Isso estabelece a norma de uma vez por todas: o significado original de ekklesia “igreja”, não era uma hiperorganização de funcionários espirituais, desligada da assembléia concreta (um clero). Denota uma comunidade reunindo-se num local especifico, a uma hora especifica, para uma ação especifica- uma igreja local, embora formasse com as outras igrejas locais uma comunidade abrangente, a igreja inteira… Assim, cada igreja local torna a igreja inteira plenamente presente; de fato, pode ser entendida- na linguagem do Novo Testamento- como povo de Deus, corpo de Deus e edifício do Espírito.[5]
Onde houverem irmãos reunidos em nome de Cristo, não importando o número, ali estará uma ekklesia (igreja). É esse o entendimento dos cristãos do Novo Testamento sobre o fato.
Os cristãos primitivos não concebiam a igreja como um lugar de culto como se faz hoje. Igreja significava um corpo de pessoas numa relação pessoal com Cristo. Esse grupo se reunia em casas (At. 12: 12; Rm 16: 5 23; Cl. 4:15; Fm 1-4), no templo (de Jerusalém) (At. 5:12), nos auditórios públicos de escolas (At. 19: 9). E nas sinagogas enquanto lhes permitiam fazer isso (At. 14: 1,3; 17: 1; 18: 4). O lugar não era tão importante como o modo de se encontrarem para ter comunhão uns com os outros e cultuar a Deus.[6]
II- ONDE COMEÇOU A IGREJA E SUA EXPANSÃO.
Bem, partindo do pressuposto, depois do estudo desta primeira parte, que você já sabe o que é a igreja, resta saber onde ela começou. Vamos a isso?
2. a- A origem da Igreja.
Quem lê com atenção os três primeiros capítulos da Carta de Paulo aos Efésios acha com facilidade a reposta. Ali está exposto que a igreja se originou na mente de Deus muito antes da fundação do mundo(Ef. 1:3-6), e foi revelada na história, aqui no mundo, a partir das boas-novas (evangelho) de Jesus Cristo (Ef. 1:22-13; 2; 3:1-13). Agora onde e quando começou aqui na terra o grupo de adoradores de Deus, convertidos pelo evangelho? Preste atenção no seguinte:
2.b- No Antigo Testamento havia um povo que servia a Deus e este povo estava majoritariamente entre os judeus. Eles eram a comunidade de Deus (Ex. 19:5; Dt. 7:6; 14:2; 26:18; Sl. 135:4; Ml. 3:17). Deve ficar claro que nem toda nação judaica era reta diante de Deus, mas Deus tinha no meio daquele povo um remanescente (grupo) fiel. Note-se também que a adoração do Antigo Testamento era centralizada:
- Racialmente nos judeus (Ex. 19: 5-6);
- Geograficamente em Jerusalém e seu templo (Dt. 12; 1Rs. 11: 36); e
- Clericalmente nos sacerdotes, eles que eram os mediadores entre Deus e o povo fazendo o serviço sagrado (Hb. 9:1-10). Era assim na Antiga Aliança.
2.c- O Novo Testamento traz Cristo e com Ele muitas mudanças. O povo de Deus nesta época da graça, com a vinda do Salvador, faz parte de uma Nova Aliança (Jr. 31: 31-33; Lc. 22: 20; Hb. 8). Agora esta Nova Aliança:
- Não é mais centralizada racialmente numa nação, mas é feita com qualquer um que tenha fé em Cristo como Salvador (Ef. 2-3; Ap. 5: 9-10);
- Não é mais centralizada geograficamente num lugar, mas Deus está em qualquer lugar onde Cristo esteja e haja adoração verdadeira a Ele (Jo. 4: 20-24; Mt. 18:20);
- Não é mais centralizada clericalmente num grupo de sacerdotes, num clero, mas todos os cristãos são feitos sacerdotes e podem ir a Deus através Jesus Cristo (Hb. 10: 19-23; Mt. 27: 45-51).
De acordo com Paulo em Ef. 3:4-6, um grande mistério foi revelado a ele, que agora, na época da graça que Jesus inaugurou com a sua vinda (Jo. 1:17), não só os judeus como na época do Antigo Testamento, mas também os gentios (os não-judeus) poderiam fazer parte da mesma comunidade, o mesmo corpo, a Igreja de Deus. Foi esta comunidade espiritual que Jesus edificou (Mt. 16: 16; Ef. 3:8-12; Tt. 2:14). E quando isso aconteceu?
2.d- Antes de sua morte Cristo prometeu o Espírito Santo aos seus discípulos (Lc. 24: 49; Jo. 14: 15-17), pois já no Antigo Testamento Deus através do profeta Joel havia profetizado este ato (Jl. 2: 28-32). Então, após a morte e ressurreição de Jesus, no dia da Festa de Pentecoste esta promessa foi cumprida, o Espírito Santo desceu sobre os irmãos reunidos em oração em Jerusalém (At. 1: 12-14; 2: 1-4), batizando-os eformando naquela cidade a primeira igreja Cristã do Novo Testamento. Hans Küng escreve:
Entretanto, indiscutivelmente não foi Roma, mas sim Jerusalém a comunidade principal e a matriz do primeiro cristianismo. E a história da primeira comunidade não foi uma história de romanos e gregos, mas sim uma história de judeus naturais, falassem eles aramaico ou, como era o caso muitas vezes na cultura helenística (grega) da Palestina, grego. Estes judeus que seguiram Jesus legaram à igreja que estava sendo criada a língua, as idéias e a teologia judaicas, e assim deixaram uma marca indelével em todo o cristianismo.[7]
2.e- Após a fundação da Igreja em Jerusalém os registros de Lucas dão conta de que ela começa a crescer muito em número (At. 4:4; 5: 14; 6:1) e levanta-se uma perseguição contra a mesma (At. 8:1). Se o Inimigo queria com esta perseguição arrefecer o animo dos cristãos, o tiro saiu pela culatra, pois a mesma foi a causadora da primeira dispersão dos cristãos e de uma grande onda missionária, pois os que saíram de Jerusalém “pregavam a palavra onde quer que fossem” (At. 8:4). Saíram para a Judéia e Samariaanunciando o Evangelho.
Em Samaria foi Filipe é o primeiro pregador (At. 4-25). Em At. 9:1-2, já temos noticias de que havia cristãos emDamasco, cerca de 213 km de Jerusalém. Em At. 9:31-42, Lucas escreve que já haviam “igrejas” nas regiões da Judéia, Galiléia e Samaria, e de conversões em Lida e Jope.
O apóstolo Pedro em obediência a uma visão que recebeu de Deus prega o evangelho ao gentio Cornélio emCesaréia (At. 10: 1ss), que abraça a fé junto a muitos outros, ele, como o eunuco evangelizado por Filipe (At. 8: 26-27) são os primeiros gentios a receberem o evangelho que se tem noticia. Filipe após evangelizar o eunuco vaia para Azoto, e evangeliza muitos outros lugares.
Em At. 11: 19 está escrito que os perseguidos de At. 8:1 foram para a Fenícia, Chipre e Antioquia. Em Antioquia, que era a capital da província romana da Síria, cidade grande e importante de cultura helênica, os gentios começam a ser evangelizados mais sistematicamente, pois antes esta pregação era quase totalmente direcionada aos judeus, e é formada ali a primeira Igreja de gentios no NT. Em Antioquia são chamados pela primeira vez de “cristãos = povo de Cristo” (At. 11: 26). Antes eles eram designados também como o “povo do caminho” (At. 9:2; 19:9; 22: 4; 24: 14, 22).
III- A HIERARQUIZAÇÃO E ROMANIZAÇÃO DA IGREJA.
Acabamos de mostrar que a Igreja foi um plano de Deus desde antes da fundação do mundo e revelada na história pela pregação do evangelho de Jesus Cristo, tendo sua expressão terrestre sido formada em Jerusalém no Dia de Pentecoste. É daquela igreja formada em Jerusalém que descendem todas as outras igrejas cristãs do mundo, ela é a primeira, a original.
Mas e os que dizem que a ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana) foi a primeira Igreja têm razão? Certa vez alguém escreveu: “É verdade que a Roma papal não se fez em um dia”.[8] Realmente, a Igreja Cristã não começou em Roma, nem tendo um o Papa por chefe. Mas, como surgiu a Igreja Romana? Vamos descobrir agora.
3.a- A Hierarquização da Igreja.
Vamos começar definindo a palavra Católico: em primeiro lugar esta palavra não significa uma igreja, mas significa: todo, geral. Ela não é usada em nenhuma parte do Novo Testamento, e foi aplicada a igreja cristã pela primeira vez pelo bispo de Antioquia Inácio, em uma carta para a Igreja de Esmirna. Ele queria, ao usar esta palavra, se referir à igreja toda, inteira, completa.[9]
A idéia de uma igreja universal centrada em um bispo não foi determinada por Deus, nem aparece no Novo Testamento.
Uma investigação cuidadosa das fontes do Novo Testamento nos últimos 100 anos nos mostrou que esta constituição de igreja centrada no bispo, não é absolutamente determinada por Deus ou dada por Cristo, mas é o resultado de um longo e problemático desenvolvimento histórico. É obra humana, e, portanto, poder ser mudada.[10]
Nas primeiras igrejas cristas não havia um episcopado monárquico, mas sim era o sistema congregacional que imperava.
No inicio, as igrejas demonstravam grande variedade de organização e práticas. Com o passar dos anos, paulatinamente, elas começaram a exigir um padrão mais rígido. A partir do momento histórico em que a Igreja foi legalizada pelo império Romano, ela passou a se adaptar à imagem do mundo secular.[11]
Küng é enfático ao observar:
Qualquer leitor da Bíblia pode ver, a partir dos primeiros documentos do Novo Testamento, aquelas cartas do apóstolo Paulo cuja autenticidade é indiscutível, que neles não há qualquer menção a uma instituição legal da igreja (nem com base na “autoridade apostólica” de Paulo).[12]
E o historiados Earle E. Cairns:
Os apóstolos tomaram a iniciativa da criação de outros cargos na Igreja quando dirigidos pelo Espírito Santo. Isso não implica uma hierarquia piramidal, como a desenvolvida pela Igreja Católica Romana, porque os novos oficiais deviam ser escolhidos pelo povo, ordenados pelos apóstolos e precisavam ter qualificações espirituais próprias que envolviam a subordinação ao Espírito Santo. Assim, havia uma chamada interna pelo Espírito santo para o oficio, uma chamada externa pelo voto democrático da igreja e a ordenação ao oficio pelos apóstolos. Não deveria haver uma classe especial de sacerdotes à parte para ministrar um sistema sacerdotal de salvação, porque tanto os oficiais da igreja como os membros eram sacerdotes com o direito de acesso direto a Deus através de Cristo (Ef. 2:18).[13]
Note-se também que as palavras bispo, pastor e presbítero eram empregadas como sinônimas no Novo Testamento[14] (At. 20: 17, 28), sem haver acentuada subordinação hierárquica (Fp. 1:1, veja que neste texto quem vem primeiro são os santos, ou seja, os membros da igreja, e não os oficiais; veja também a equivalência entre presbítero e bispo em Tt. 1:5,7).[15]
Os irmãos nas igrejas resolviam seus problemas em reuniões de membros, assembléias.
Se teu irmão pecar {contra ti}, vai argüi-lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão. Se, porém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que, pelo depoimento de duas ou três testemunhas, toda palavra se estabeleça. E, se ele não os atender, dize-o à igreja; e, se recusar ouvir também a igreja, considera-o como gentio e publicano (Mt. 18:15-17).
Veja que a palavra final não é de um líder ou bispo, mas da igreja.
Quando aconteceu um problema na ação social que a Igreja Primitiva praticava veja o que os apóstolos fizeram:
Então, os doze convocaram a comunidade dos discípulos e disseram: Não é razoável que nós abandonemos a palavra de Deus para servir às mesas. Mas, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço; e, quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao ministério da palavra. O parecer agradou a toda a comunidade; e elegeram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Pármenas e Nicolau, prosélito de Antioquia (At. 6:2-5).
A comunidade era ativa na resolução de todas as situações, o poder não estava numa classe ordenada ou privilegiada, mesmo com os apóstolos em vida (At.15; 1 Co. 5:1-8; 6: 1-5).
Quem julgava a doutrina não era um grupo de líderes, um clero, mas a igreja toda tinha esta responsabilidade (Gl. 1: 1, 6-9).
Paulo diz que se fez acompanhar até Jerusalém por um representante que foi eleito[16] pelas igrejas (2Co. 8:19). Comentando o fato uma nota na Bíblia de Estudo de Genebra diz: “Havia algum papel congregacional na seleção de representantes que acompanhassem Paulo”. [17] Era a igreja que escolhia democraticamente seus oficiais (At. 1:15-26; 6:3).
Não havia um poder central como passou a ter nos séculos III e seguintes, mas as igrejas seautogovernavam, autosustentavam, autodisciplinavam, e autopropagavam, na direção do Espírito Santo.[18] Só com o passar do tempo é que os bispos assumiram uma posição de hierarquia nas suas igrejas, assumindo o papel de sacerdotes e como na Antiga Aliança, se fizeram de mediadores do povo.
3.b– A Romanização.
Também não havia uma sede única no cristianismo primitivo, como Roma se tornou depois, mas existiam várias sedes importantes como: Corinto, Roma, Éfeso, Antioquia, Alexandria, Jerusalém, mas eram sedes que não dominavam sobre as outras.[19] Só foi em meados do século III que a igreja de Roma com seu bispo começou a requerer supremacia para si, e a posição de destaque da cidade de Roma só começa no final do século IV.[20] Roma era a capital do império e era natural que a igreja de lá quisesse assumir uma posição de dominação no Ocidente, afinal era a igreja da cidade onde estava o imperador.
É evidente que a Roma papal não se fez em um dia. Mas, intencionalmente e conscientes de seu poder, os bispos de Roma dos séculos IV e V desenvolveram sua competência na direção da primazia universal. As reivindicações que eles fizeram talvez não tivessem fundamento bíblico nem teológico, mas, com o passar dos séculos, entraram para a lei da igreja como fatos aceitos.[21]
Observe abaixo alguns passos para a romanização da Igreja:
- No cristianismo primitivo a igreja de Roma era mais uma como as outras igrejas irmãs.[22]
- Atribui-se a São Cipriano (bispo de Cartago, 200-258) a frase Ecclesia in epíscopo (A Igreja está no bispo). A divisão administrativa do império (romano) acabou por ser aproveitada na organização da hierarquia e administração eclesiásticas: as sedes episcopais coincidiam com os territórios das antigas cidades romanas, a estrutura da religião sobrepôs-se a própria estrutura do império. O bispo, máxima autoridade religiosa, firmou-se também como autoridade civil, preenchendo vazios de poder a partir do Baixo Império Romano (o império em queda). [23]
- Com o bispo Júlio (337-352) a igreja de Roma se declarou um tribunal de recursos universais.
- O Concílio de Constantinopla (381) reconheceu a primazia da sede romana. Foi dado ao patriarca de Constantinopla certo tipo de primazia, mas logo abaixo do bispo de Roma.[24]
- O bispo Dâmaso (366-384) começou a reivindicar poder para si usando Mt. 16 18, e exaltou Roma como a única sede da Igreja excluindo todas as outras. Provavelmente tenha sido ele o primeiro a descrever Roma como a “Sé Apostólica”. [25]
- Sirício (384-399) foi o primeiro bispo romano a se intitular de papa. Esta palavra era usada por todos os bispos do oriente, e não dava exclusividade de chefia a nenhum deles.
- Em 390 o imperador Constantino transferiu a capital para a cidade de Constantinopla, em Roma o homem forte passou a ser o bispo. [26]
- No séc. V o bispo Inocêncio (401-417), solicitou que as questões importantes fossem levadas ao bispo romano para que ele desse a decisão.
- Foi o bispo Bonifácio (418-422) que declarou que seus julgamentos e decisões deveriam ser permanentes e obrigatórios.
- Em um edito em 445, o imperador Valentiniano III reconheceu a supremacia do bispo de Roma em negócios espirituais, o que ele estabelecesse agora virava lei. [27]
- E foi Leão I (440-461) o homem que se pode dizer foi o primeiro papa na essência da palavra.[28]Famoso por ter conseguido livrar Roma dos ataques bárbaros de Atila, o Huno, e de Genserico, não foi difícil atrair poder para si. Roma estava perdendo o império (o Império Romano caiu em 476), e a Igreja Romana assumiu o seu lugar. Ele começou a insistir que o papa de Roma deveria ter preeminência sobre todos os sacerdotes, e que a igreja de Roma, pela consagração conjunta segundo ele, de Paulo e Pedro deveria ser colocada acima das outras igrejas.
Portanto, toda a hierarquização (bispos supremos, papas, cardeais, etc.) e a romanização da Igreja foi algo que levou muito tempo para se construir. A Igreja Cristã não foi estabelecida por Cristo em Roma, nem no modelo da Igreja Romana, esta igreja é um produto do século IV em diante.
Joelson Gomes
Editor do DERP, professor e vice-diretor no Seminário Congregacional em João Pessoa/PB
[1]Veja FERREIRA, Franklin/ MYATT, Allan. Teologia Sistemática (São Paulo: Vida Nova, 2007), p. 946. BRUCE, F. F. (Ed) Comentário Bíblico NVI (São Paulo: Vida, 2009), p. 1578
[2] Palavras Chaves do Novo Testamento Grego, 2ª Ed. (São Paulo: Vida Nova, 2000), p. 45.
[3] RUSCONI, Carlo. Dicionário do Grego do Novo Testamento (São Paulo: Paulus, 2003), p. 156.
[4] Teologia da Igreja (São Paulo: Shedd Publicações, 2004), p. 24.
[5] KÜNG, Hans. Igreja Católica (São Paulo: Objetiva, 2002), p. 30.
[6] CAIRNS, Earle E. O Cristianismo Através dos Séculos, 2ª Ed. (São Paulo: Vida Nova, 2008), p. 70.
[7] Op. Cit., p. 37.
[8] KÜNG, Hans. Igreja Católica, p. 71.
[9] Ibid, p. 44.
[10] Ibid, p. 46.
[11]MULHOLLAND, Dewey M. Teologia da Igreja, p. 62. BRUCE, F. F. Comentário Bíblico NVI, p. 1502.
[12] Igreja Católica, p. 46
[13] O Cristianismo Através dos Séculos, p. 67.
[14] BRUCE, F. F. Comentário Bíblico NVI, p. 1805.
[15] Comentando Tito 1:7 diz A Bíblia de Estudo de Genebra: “A mudança casual de “presbítero” para “bispo” mostra que Paulo entende os dois termos como designação do mesmo ofício”. Bíblia de Estudode Genebra (São Paulo: Cultura Cristã, 1999), p. 1457.
[16] É importante a palavra grega que Paulo usa aqui para eleito (cheirotonêtheis),esta palavra significa: votar erguendo a mão, eleger, apontar, indicar. Pode indicar que as igrejas elegeram este homem através de votação. Ver RIENECKER, Fritz e ROGERS, Cleon. Chave Lingüística do Novo Testamento Grego (São Paulo: Vida Nova, 2006), p. 356.
[17] Ibid, p. 1381.
[18] BRUCE, F. F. Comentário Bíblico NVI, p. 1994
[19] Arquivos História Viva Cristianismo (São Paulo: Duetto Editorial, 2008), p. 40.
[20] MCGRATH, Alister E. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica (São Paulo: Shedd, 2005), p. 544.
[21] KÜNG, Hans. Igreja Católica, p. 71. Também CAIRNS, Earle E. O Cristianismo Através dos Séculos, p. 135.
[22] “O Pontífice Romano era apenas o principal clérigo do Ocidente, exercendo seu relativo poder apenas sobre seus subordinados regionais. Os bispos de Alexandria, Antioquia, Cesaréia e Constantinopla possuíam semelhante autoridade episcopal.” RAMÁLHO, Jefferson. Jesus é Deus? (São Paulo: Editora Reflexão, 2008), pp. 79-80
[23] Arquivos História Viva Cristianismo, pp. 39-40.
[24] CAIRNS, Earle E. O Cristianismo Através dos Séculos, p.136.
[25] Ibid.
[26] Ibid, p. 135.
[27] Ibid, p. 136.
[28] Para detalhes sobre o assunto: KÜNG, Hans. Igreja Católica, pp. 43-90.
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